Educação Inclusiva: um processo em construção

Esta série de relatos foi feita em parceria com o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED) da Unicamp. Mariana Rosa, mulher com deficiência, jornalista, educadora, mãe de Alice, que tem paralisia cerebral, e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência – entrevistou educadoras e educadores brasileiros que dão exemplos de como é possível construir ambientes escolares que reconheçam as diferenças e acolham a todas e todos.

Betânia Gonçalves Schommer é licenciada em Educação Especial pela Universidade de Santa Maria (RS) e professora na rede regular de ensino de Florianópolis.

Quando terminei a faculdade, em 2012, fui trabalhar em uma escola que tinha classes especiais, em Porto Alegre. Foi um choque para mim, porque saí da universidade imbuída da ideia da inclusão, e ali encontrei outra perspectiva. Foi como um balde de água fria. Aquele ambiente era muito desgastante, eu vivia em conflito com o que havia aprendido.

Atualmente, trabalho na rede municipal de ensino de Florianópolis, o que é motivo de alegria para mim. Nessa caminhada na educação pública, percebo que a rede é organizada para pensarmos e fazermos a inclusão. Hoje, atuo numa sala multimeios, ou sala de recursos, como dizem. A escola onde trabalho é uma escola-polo, atendemos a comunidade de escolas próximas a essa também. Meu trabalho é fazer o acompanhamento de observação de crianças, com e sem diagnóstico. Elas têm o atendimento educacional especializado no contraturno no polo, mas isso não é tudo. Nós fazemos muitos estudos de caso e atuamos também dentro da unidade da criança, no turno escolar que ela frequenta.

Tenho momentos de mais proximidade com a família, com o professor, tem intervenção na sala para pensar em como favorecer a participação da criança envolvendo todo o grupo. O nosso papel como serviço de educação especial que se propõe à inclusão é trabalhar de forma articulada. Não adianta eu atender uma criança no contraturno lá na sala de recursos, se depois ela não consegue participar do grupo, se o professor não tem uma boa relação com ela.

Por isso nosso trabalho precisa estar muito bem fundamentado na perspectiva inclusiva, nessa articulação, para não incorrer no erro de defender a especialização, o recorte, e se tornar uma segregação. É preciso garantir a participação e o aprendizado de cada criança percebendo-a de maneira integral, antes de qualquer diagnóstico. A criança pode, inclusive, estranhar o ambiente, pode apresentar demandas que não têm relação com a deficiência ou o diagnóstico em si, são demandas de qualquer criança que está sendo escolarizada. Por isso, o trabalho precisa ser criterioso para não medicalizar toda e qualquer característica ou comportamento.

Tenho tentado, ao longo dos anos, me desconstruir também. Quando cheguei na unidade em que trabalho atualmente, busquei entender quem eram os estudantes. Fui conversando, indo às salas, interagindo com os professores, até que cheguei em uma sala sobre a qual me disseram “aqui estão as crianças que têm problema”. Fui tomando nota de tudo, para que o nosso trabalho pudesse contribuir para remover essas barreiras. Porque se falamos de inclusão, não podemos aceitar espaços fragmentados.

A partir dessa premissa, pensamos em organizar os atendimentos do AEE da seguinte forma: passamos a atender o aluno com deficiência junto com outro colega da turma. Assim, aquela curiosidade que ficava em torno do espaço que parecia ser concebido para uns e não para outros foi sendo suprida. Muitos entendiam que aquele espaço era apenas para determinada criança, e foi justamente isso o que quisemos desmitificar para avançar. Os colegas puderam ir junto, puderam estar na sala, participar, mesmo tendo um atendimento voltado para a criança com deficiência. Foi possível fazer as brincadeiras acontecerem também naquele espaço, que se tornou mais um lugar de encontro, de convívio, e não de segregação. Houve momentos em que a turma inteira foi para a sala multimeios! A sala também passou a ficar aberta na hora do recreio, para que qualquer criança pudesse visitar, brincar, ler um livro. A partir do momento em que aquele espaço passou a ser de cada um, e não exclusivo para crianças com deficiência, mudou a percepção, a configuração, a noção em relação ao espaço e também em relação aos colegas com deficiência. O espaço que é apropriado por todos contribui para a naturalização das relações e das pessoas que passam por lá.

“A escola inclusiva está em construção. Isso requer, todo o tempo, que possamos fazer esse trabalho bem próximo dos professores, articulando, criando possibilidades de intervir nas barreiras à aprendizagem, muito mais do que pensando na especificidade daquele estudante. No ano passado, por exemplo, houve uma professora que estava receosa do que poderia propor para seu estudante com baixa visão e autismo. Nós dialogamos e compreendemos que uma variação na proposta de abordagem seria mais interessante do que uma adaptação para a especificidade. Ela propôs abordagem em dois ou três formatos, os quais contemplaram não só a criança com deficiência, mas todas as outras, a partir de uma ampliação do repertório. Os professores costumam ter medo. Medo do que fazer nessa situação em que “não sou especialista”, mas isso não faz sentido na educação inclusiva, porque nosso trabalho é ensinar alunos e não “tipos de alunos”.

Hoje, consigo visualizar muitas situações de professores trabalhando para garantir a inclusão. Os relatos de descrença ou de preconceito são em minoria. Um de nossos maiores desafios, atualmente, é o professor auxiliar. Em Florianópolis, a portaria traz quais as condições em que o auxiliar de educação especial é necessário ou não. O que ocorre é que, muitas vezes, a família quer impor essa necessidade. Nossa maneira de atuar é: recebemos a criança e a observamos durante alguns dias, na escola, para entender que tipo de apoio ela precisa, o que configura a necessidade de um profissional que a auxilie. Isso é importante porque o auxílio, quando necessário, não pode faltar, mas também não pode sobrar, para comprometer a autonomia e os compromissos da coletividade. Nem toda criança com deficiência necessita de um professor auxiliar. Então, nosso trabalho é conversar com a família para compreendemos juntos essas necessidades. A escola precisa ser um lugar propício ao exercício do cuidado, da autonomia e da liberdade, para além da construção de conhecimentos, e é nosso papel garantir que essa possibilidade de dê, de maneira equânime, para cada um dos estudantes.