
Há trajetórias que nascem da coragem de não se calar diante das desigualdades. Na Escola Estadual Cândido Portinari, em Belo Horizonte (MG), a professora e diretora Kelly Cristina de Assis viu na pluralidade presente no ambiente escolar uma oportunidade de abrir caminhos para um projeto de vida coletivo. Sua história é também a história de uma escola que aprende, todos os dias, a fazer de um ambiente diverso um espaço para exercer o direito pleno à convivência.
Nesse sentido, Kelly tem trabalhado para que a diversidade das histórias, culturas e experiências dos estudantes e famílias se torne a base de uma educação mais humana e democrática. Esse compromisso não começou agora. É o resultado de uma trajetória que, desde a infância, foi marcada pela força de uma mãe solo, pela inspiração de um avô que acreditava na educação como forma de emancipação e pela coragem de uma mulher negra — a primeira da família a chegar ao Ensino Superior. “A educação sempre me inspirou. Foi um meio e um caminho pra mim”, conta.
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A educação como oportunidade de construir trajetórias
Essa convicção e a vontade de dar sentido à aprendizagem se tornou o fio condutor da vida de Kelly. Não apenas como profissão, mas como elemento articulador de emancipação e justiça social. Nascida e criada em um bairro de periferia da região Noroeste de Belo Horizonte, a educadora conta que a negação de direitos e a invisibilidade social marcam a trajetória de sua família, composta predominantemente por afrodescendentes. Ainda no período da educação básica, Kelly sentiu com clareza, pela primeira vez, a dor dos preconceitos raciais, sociais e de gênero. Depois do Ensino Médio, ao ter contato com coletivos de apoio a ações afirmativas para a população negra, a exemplo do cursinho Educafro MG, Kelly teve a oportunidade de reconhecer direitos constitucionais e desenvolver uma leitura mais ampla e crítica da realidade. Mais tarde, já tendo completado a licenciatura, ela retornou ao Educafro como professora voluntária de Geografia.
Desde jovem, portanto, Kelly construiu conhecimentos junto a movimentos sociais e iniciativas voltadas à promoção da igualdade racial, encontrando na docência o espaço para fazer ecoar o que aprende. Graduada em Geografia, com especialização em Educação Contemporânea e mestrado em Educação voltada para as Relações Étnico-Raciais, a professora vê o ensino como um processo de transformação. “Quando acessei o ambiente escolar, fui me deparando com as rupturas que temos na sociedade, com a discriminação, com as desigualdades sociais e educacionais. Tudo isso me motivou, no sentido de me manter firme com minha profissão e buscar esse entendimento junto com os meus estudantes”, explica.
Uma escola que escuta
No mestrado realizado na Faculdade de Educação da UFMG (FAE), Kelly desenvolveu uma pesquisa que ouviu mães e responsáveis de estudantes negros, para entender suas vivências. A ideia era também saber como essas pessoas entendem o papel da escola e da educação na formação dos jovens. A dissertação “Revelando a Escola Pelo Olhar das Mães Negras: caminhos para a superação do racismo institucional” foi defendida em 2024. A pesquisa deu origem ao Guia para a Superação do Racismo Institucional, um material educativo que propõe práticas para que as escolas reconheçam e enfrentem as desigualdades que ainda atravessam o cotidiano. Com foco em professores e gestores escolares, “o guia nasceu da escuta, de compreender que o olhar das famílias é essencial para pensar a escola que queremos construir”, resume. Segundo a educadora, a iniciativa é um convite a revelar a potência das relações e fazer da convivência um ato pedagógico.
Em sua pesquisa, Kelly entrevistou três mães de estudantes negros do 6º e do 9º ano, buscando compreender suas percepções sobre a escola e a educação dos filhos. Para preservar o anonimato das participantes, escolheu identificá-las com nomes de mulheres negras que são símbolo de luta e resistência. Uma delas recebeu o nome de Dandara, em homenagem a Dandara dos Palmares, liderança quilombola que, ao lado de Zumbi, enfrentou o sistema escravocrata e se tornou referência na defesa da liberdade e dos direitos do povo negro. Na pesquisa de Kelly, Dandara relata impactos profundos do racismo em sua experiência escolar; e que ainda hoje persistem:
“Na minha época, era mais difícil, tinha mais preconceito, essas coisa, né?! Hoje tem, mas é mais mascarado, antigamente não. Então, o que eu tenho pra dizer: desde a primeira a quarta série, depois de quinta a oitava. Sempre teve essas coisinhas sobre racismo. O racismo sempre esteve presente. Era difícil, tinha vez que eu nem queria ir para a escola. Mas eu tinha que ir, meu pai me obrigava a ir. Então, era frustrante, me sentia bem diminuída. Nossa Senhora não gosto nem de lembrar. E o Tuco passa por isso também.”
(Dandara – Trecho de entrevista, 2024)
A força da coletividade
A história de Kelly também é marcada pela força do trabalho em conjunto. Depois de anos como professora, ela e um grupo de colegas decidiram participar das eleições à diretoria da escola onde trabalhavam. “Queríamos colocar em prática tudo o que sonhávamos para aquele espaço”, conta. Desde então, a gestão tem sido uma oportunidade de concretizar mudanças e enfrentar desafios diários, especialmente o de acolher a diversidade das famílias. “A escola foi pensada, em suas origens, para atender a um grupo específico. Isso deixa marcas até hoje. Trabalhar com as diferentes realidades das famílias exige escuta, diálogo e reconstrução constante. É nisso que acredito: em um território escolar em que todos se sintam pertencentes”, comenta.
A potência da colaboração e da ação coletiva, sempre presente no caminho de Kelly, foi encontrada também em diversas experiências de formação continuada e desenvolvimento profissional. Em 2020, a educadora participou do programa Residência iungo, em que encontrou uma rede de professores de todo o país e compartilhou suas experiências e práticas. “O ‘Residência’ foi um divisor de águas. Ampliou minha visão sobre ensino e gestão e reforçou meu compromisso com uma educação com equidade”, afirma.
A liderança do iungo, Renata Alencar, relembra a experiência compartilhada no programa. “Eu conheci a Kelly na primeira turma do Residência iungo para educadores. É muito significativo que o programa tenha sido um espaço formativo, estruturado e que apresentava entre os seus propósitos a convivência, a colaboração e a ideia de que o educador aprende com o educador. Ao falar da sua trajetória, Kelly põe muita atenção justamente na importância da escuta e na constituição de uma comunidade de aprendizagem que envolva estudantes, famílias e equipes escolares”, diz.
Assim, em sua trajetória docente, Kelly reforça a convicção de que ninguém transforma sozinho. E de que a convivência é o que sustenta o aprendizado, dentro e fora da sala de aula.
Quando educar é transformar
Kelly acredita que a educação só faz sentido quando desperta protagonismo e pertencimento. Por isso, incentiva projetos que partem das vivências dos alunos, das potências de seus territórios e das histórias que cada um traz para a escola.

“O meu fazer docente sempre foi engajado para contribuir na formação cidadã, fomentando o protagonismo das turmas para abrir caminhos dentro da escola e também nos territórios que eles quiserem acessar”, diz.
Há três anos como diretora, a educadora acredita que estar nesse espaço é mais do que uma conquista pessoal: é um ato coletivo e simbólico. “Sou uma mulher negra, periférica e ocupo um lugar de poder e decisão. Isso tem peso e significado. Representa o esforço de tantas pessoas que vieram antes de mim e abre caminho para outras que virão”, afirma.
Da sala de aula à gestão, sua atuação é movida pela ideia de que a convivência se aprende, se pratica e se renova todos os dias. A escola se torna, assim, um espaço de formação integral, em que aprender é também viver junto e reconhecer o outro, é transformar diversidade em convivência.
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