por Kátia Alves de Sá, em série de relatos produzidos pelo Porvir em parceria com o iungo.
Nas escolas profissionais do Ceará, a formação pessoal do aluno é parte da base curricular. Em 2019, eu lecionava sociologia na Escola Estadual de Ensino Profissional Monsenhor José Aloysio Pinto, na cidade de Sobral, e pedi para atuar também no componente de Projetos de Vida. Sentia um grande desejo de contribuir para que meus alunos conseguissem superar seus desafios e reconhecer seu potencial, e acreditava que minha bagagem de conhecimentos me permitia colaborar: sou formada em ciências sociais, já lecionei na área de filosofia e estou fazendo uma formação continuada em psicanálise. Assim, me apaixonei pela proposta das aulas de Projetos de Vida, que promovem autoestima, autoconhecimento e as mais diversas competências socioemocionais não só de forma teórica, mas também prática, com atividades lúdicas, reflexões e leituras.
Atualmente, trabalho Projetos de Vida com nove turmas de todos os anos do ensino médio. No primeiro ano, o foco é autoconhecimento: o estudante desenvolve as competências de saúde emocional, física, intelectual e espiritual, sendo estimulado a reconhecer suas emoções e a refletir sobre temas que vão desde a importância do exercício físico até o modo como ocorre a aprendizagem. No segundo ano, a reflexão é sobre a relação do aluno com a sociedade, seja a família, os amigos ou a comunidade. E no terceiro ano, falamos das relações do campo profissional. Ou seja, primeiro o estudante desenvolve a relação com eu; depois, com o outro; e ao final, há a junção das duas coisas para que pense em qual papel quer desenvolver na sociedade e de que forma deseja contribuir.
O termo Projetos de Vida leva muita gente a pensar que vamos projetar a vida dos alunos ou dar uma receita de bolo para que ele chegue ao sucesso. Não é assim que funciona. Nunca dizemos como o aluno deve agir ou qual profissão deve seguir. Ao contrário: promovemos atividades reflexivas que o levam a reconhecer sua identidade, suas dificuldades e suas possibilidades de ação de acordo com seus próprios desejos.
Na minha escola, o trabalho do segundo ano usa o conceito de “saúde” como referência à construção de práticas e comportamentos saudáveis. Trabalhamos quatro grandes temas, um por bimestre: saúde relacional, que busca desenvolver o respeito nas relações pessoais e sociais, incluindo relacionamentos amorosos e de amizade; saúde comunitária, que aborda iniciativa social e estar aberto ao novo; saúde ecológica, que reflete sobre a nossa relação com o meio ambiente; e saúde familiar, que engloba tanto as relações familiares dos alunos como as mudanças nas constituições familiares ao longo do tempo. Colocamos situações para que o aluno perceba que a realidade que ele vive é resultado de um processo que não envolve só sua vida, mas toda a história de um país e de um povo.
Antes deste trabalho começar, é comum os alunos chegarem com o discurso de que gostariam de ter uma família “normal”. Mas ao se depararem com tantas constituições familiares, eles percebem que não existe apenas um diferente. Todos são diferentes.
Cada aula tem um tema diferente, e as reflexões podem partir de textos, músicas, vídeos e atividades lúdicas. Em uma delas, por exemplo, pedimos que cada aluno desenhe sua família e apresente este desenho para a turma. A diversidade é enorme: alguns colocam a vizinha; outros, o cachorro e o gato; outros foram criados apenas pelo pai ou pela mãe; outros, pelos avós; outros têm pais ou mães homossexuais. Antes deste trabalho começar, é comum os alunos chegarem com o discurso de que gostariam de ter uma família “normal”. Mas ao se depararem com tantas constituições familiares, eles percebem que não existe apenas um diferente. Todos são diferentes, portanto o normal é o diferente – ou ser diferente é o normal. Quando os alunos se identificam na diversidade, passam a ter compreensão e empatia em relação à situação de todos. Eles passam a respeitar tanto o modo de vida de suas próprias famílias quanto o modo de vida das famílias dos colegas. Ou seja: passam a respeitar as constituições familiares de toda a comunidade. Muitos choram, se emocionam, pois é como se estivessem se olhando no espelho e se enxergando. Este processo promove a desconstrução de muitos preconceitos – geracionais, de gênero, de diferença de pensamento – e a construção de um respeito pela diversidade.
Conduzo este tipo de vivência com muita delicadeza e ressaltando justamente o respeito: ninguém pode utilizar nenhuma palavra que deprecie a realidade de um colega ou a sua própria realidade. Discutimos muito sobre o papel cultural de todos os integrantes da família para que os alunos percebam que estes papéis são construídos e podem ser modificados, caso eles assim desejem. Se existe uma cultura machista na minha família e eu não desejo mais viver essa situação, posso mudar esse papel social a partir da minha prática, da mudança do meu pensamento e do meu comportamento. Mostramos que a cultura é uma construção humana, e que cabe ao aluno decidir se quer mudar ou manter. Mas ele só muda se consegue ver as possibilidades, oportunidades e alternativas de mudança que ele tem.
Durante as aulas de Projetos de Vida, os estudantes refletem muito sobre a importância do que é dito dentro de casa. Chegam relatos pesados, de falas muito violentas. Para o professor, também não é fácil ouvi-las. Nestes momentos, não posso querer ser mãe deles: o que posso fazer é ajudá-los a compreender o papel que têm na mudança dessa linguagem. Em uma das atividades, pedimos que os alunos reformulem uma frase ofensiva, preservando o sentido do que a pessoa queria dizer, mas construindo-a de forma mais gentil. Isto ajuda o aluno a perceber que ele tem o poder de mostrar, de forma compreensiva, o modo como gostaria de ser tratado, ajudando a construir um ambiente mais saudável. Muitos estudantes trazem relatos de como conseguiram produzir uma mudança para melhor. Eles me contam que estão sendo mais ouvidos, que pediram para serem tratados com mais carinho, que estão brigando menos e conseguindo falar com mais calma.
Todos os participantes, tanto os professores quantos os alunos, têm consciência de que este é um trabalho de desenvolvimento pessoal.
As aulas são gratificantes e a resposta dos alunos é muito boa. Mesmo os mais tímidos não se recusam a participar, até porque Projetos de Vida é um componente curricular como todos os outros. Não é um componente avaliativo ou classificatório, mas é valorizado da mesma forma: uma aula de Projetos de Vida tem tanto valor quanto uma aula de português ou matemática. Os alunos percebem isso, e fazem a atividade de forma consciente. Todos os participantes, tanto os professores quantos os alunos, têm consciência de que este é um trabalho de desenvolvimento pessoal.
Durante a pandemia, foi preciso reinventar o processo. Continuo dando aulas remotas uma vez por semana, e sigo trabalhando as temáticas da melhor forma que posso. Como não é possível reuni-los em grupo, envio questionamentos pelo Google Formulários e peço que cada um responda individualmente. Dou uma devolutiva pessoal, e depois utilizo as respostas de forma generalizada nas discussões durante as aulas remotas, das quais o alunos podem participar pelo chat ou falando ao microfone. Também envio roteiros de atividades que eles podem fazer com a família. Por exemplo, no terceiro ano, quando falamos sobre a importância da cooperação no trabalho, fazemos uma brincadeira em que todos colocam colheres na boca e têm de passar uma bolinha de papel para o outro sem deixar cair. Na pandemia, pedi que fizessem esta brincadeira com a família, e passei temas para discussão, como os papéis que as meninas e os meninos têm na casa, por exemplo. Vou me adaptando, mas continuo seguindo a mesma perspectiva que é a de levar o aluno a refletir. São eles quem fazem a aula. Eu oriento a reflexão, mas eles vêm com as respostas. E a partir das respostas, busco levá-los a perceber as coisas de outros ângulos.
Lidamos com emoções dos alunos que muitas vezes nos fragilizam também, e é importante ter estrutura para conduzir o processo e estudar muito o material.
Penso que os professores que não se identificam com este trabalho devem comunicar isto à gestão da escola. E aos professores que gostam de trabalhar com Projetos de Vida, recomendo muito que busquem fazer cursos relacionados à psicologia, psicanálise e psicoterapia. Busquem, em sua formação continuada, adquirir conhecimentos que vão ajudar a entender como se posicionar nas atividades. Este é o trabalho mais difícil: conduzir o processo de forma legítima e responsável. Nossa responsabilidade é muito grande, porque estamos tocando na alma dos alunos. É preciso ter cuidado com o que é dito e com o que não é dito também. Lidamos com emoções dos alunos que muitas vezes nos fragilizam também, e é importante ter estrutura para conduzir o processo e estudar muito o material. Se me deparo com um componente curricular que não é da minha área de formação inicial, preciso estudar aquele assunto, ter propriedade no meu conhecimento.
No componente de Projetos de Vida, a gente pratica junto, se desenvolve junto, eu me coloco como parte do processo
Eu me sinto muito feliz em trabalhar com Projetos de Vida. Cada aula me modifica de alguma forma, e me ajuda a desenvolver uma postura mais madura em todos os sentidos. À medida que os alunos vão amadurecendo emocionalmente e compreendendo a importância de uma vida saudável, também eu vou adquirindo essa consciência. Aprendi a escutar, a separar o meu papel de professora do meu papel de amiga, a ter paciência para deixar meu aluno desenvolver sua autonomia a partir do que ele deseja. E percebi que também eu posso desenvolver minha autonomia de acordo com o que desejo para minha vida. No componente de Projetos de Vida, a gente pratica junto, se desenvolve junto, eu me coloco como parte do processo. É uma relação de confiança e respeito, na qual não existe autoritarismo. O professor se sente aprendendo, se sente parte do desenvolvimento. Ele não teve essa experiência como aluno, mas, agora, tem a oportunidade de vivê-la como professor-aluno.