‘Com Projetos de Vida, voltei a estudar e a gostar de trabalhar’

por Mauro Storani Pacheco, em série de relatos produzidos pelo Porvir em parceria com o iungo.

Em 2014, após 23 anos atuando como professor de educação física, eu estava desiludido com a área de educação. Me chateava muito o modelo tradicional de ensino, e já não queria ser professor. Por razões pessoais, pedi transferência para uma escola mais próxima de onde eu moro, no Rio de Janeiro (RJ), e fui alocado no Colégio Estadual Chico Anysio. Nessa escola, vi uma educação completamente diferente na metodologia, na abordagem, na integração com os colegas e na forma de trabalhar. Então a primeira transformação que o componente de Projetos de Vida causou na minha vida foi me fazer voltar a gostar de trabalhar com educação. E ao voltar a gostar de trabalhar, também me vi voltando a estudar para trabalhar.

Cheguei ao Chico Anysio um ano depois de ele ser fundado. Por uma parceria da Secretaria Estadual de Educação com o Instituto Ayrton Senna, estava sendo desenvolvido um projeto de educação integral em tempo integral. Todos os professores participaram de formações sobre as disciplinas do núcleo articulador, incluindo Projetos de Vida, que foi a que mais desenvolvi, tanto por gosto pessoal quanto pelo retorno dos alunos. Desde então, tive a sorte de trabalhar este componente com todos os anos do ensino médio.

Na minha escola, o trabalho com Projetos de Vida é sempre feito em times, para que as discussões incluam vários pontos de vista. Antes de 2017, os times tinham entre 5 e 15 estudantes de múltiplas turmas. Depois, uma mudança curricular da secretaria determinou que cada professor fique responsável por uma turma inteira, aumentando o número de alunos para cerca de 40.

Cada etapa do ensino médio tem uma proposta diferente, envolvendo três dimensões: pessoal, cidadã e profissional. No primeiro ano trabalhamos o chamado eixo Identidade, com atividades que buscam ajudar o aluno a se conhecer, a descobrir suas potencialidades e a desenvolver diferentes habilidades socioemocionais. Ou seja, a perceber quem ele é e como se relaciona no ambiente escolar e familiar. Em uma das atividades, os alunos tinham de desenvolver uma marca que os representasse. Eles tinham de escolher as formas, cores, símbolos e palavras, e depois apresentar a marca para turma. Uma aluna fez a apresentação, recebeu os aplausos do colega e me perguntou se podia fazer outra marca. Eu disse que sim, mas perguntei o motivo, e ela respondeu: “Agora que apresentei e todo mundo aplaudiu, percebi que essa marca representa como os outros me veem, mas não quem eu realmente sou”. Isso me fez pensar e, quando cheguei em casa, fiz a minha marca também, para saber como aquilo me tocava.

No segundo ano, vem o eixo Projeção para o Futuro, que busca ajudar o aluno a refletir sobre como influencia os ambientes que frequenta e como pode atuar em sociedade. Em uma das atividades, partimos de um vídeo para abordar como é difícil fazer escolhas, e como algumas das escolhas mais difíceis são justamente as que impactam grande número de pessoas. Falei com os alunos sobre dilema moral, aquela situação em que não há escolha mais fácil. Dentro desse debate, uma aluna relatou já ter passado por uma experiência de dilema moral dentro de sua comunidade. Foi daqueles relatos que marcam a gente.

Finalmente, no terceiro ano o enfoque é Mundo do Trabalho. Não é mercado de trabalho – é pensar sobre o que compõe o mundo do trabalho e como o aluno pode se inserir. Buscamos trabalhar tudo o que ele desenvolveu nos anos anteriores para que tenha possibilidade de ampliar suas escolhas, mas também de entender que as escolhas não são definitivas e que o importante é ter ferramentas para tomar outros caminhos.

Quando falamos de Projetos de Vida, falamos de projeto de futuro, não de algo que começa e termina no ensino médio. A ideia é que, após passar por todas as fases do Projeto de Vida, o aluno deixe a escola com menos interrogações e se sinta mais confiante para enfrentar as adversidades. De forma geral, as meninas costumam ser mais abertas e os meninos têm mais resistência. Para muitos estudantes, é difícil falar sobre uma família desarticulada ou sobre a situação em que vivem em suas comunidades. Por isso, é fundamental que o professor estabeleça um elo de confiança com os alunos. Sou bastante transparente e, logo no primeiro encontro, relato tudo o que vai acontecer. Chamamos isso de “combinados”, e o principal combinado é: confiança, respeito e verdade. Isso tem de existir em qualquer relação humana, mas no trabalho de Projetos de Vida é uma regra, pois nada do que for dito pode sair daquele ambiente seguro. Outro combinado é que os assuntos devem ser esgotados sem que haja ressentimento entre os pares. Não é momento de confronto, e sim de abertura de ideias. Existem argumentos, contra-argumentos e posições diferentes, mas é necessário aceitar o diferente.

Para trabalhar com Projetos de Vida, você não pode partir daquilo que você acha que é importante para os alunos – você tem de saber. As obrigações curriculares são tantas que às vezes os professores não se dão conta de quem o aluno realmente é. Os Projetos de Vida aproximam as duas partes: você desce do pedestal e o aluno passa a entender que você está ali para apoiá-lo. Mas não significa que é divã, processo de psicanálise, autoajuda ou terapia. Por mais que esteja mais próximo aos estudantes, o professor não pode virar conselheiro nem perder seu local de mediação. Quando os alunos pedem minha opinião ou perguntam o que eu faria, a resposta é sempre a mesma: sou o mediador. Estou ali para ajudá-lo a refletir, não para influenciá-lo com a minha opinião.

Durante a pandemia, ainda é possível trabalhar os Projetos de Vida com vídeos do YouTube e discussões em plataformas como o Google Meet. Por ser uma disciplina que trabalha questões diferenciadas e não tem a mesma obrigação curricular, às vezes se torna uma atividade mais fácil e interessante para os alunos neste momento. Ao mesmo tempo, não há como ignorar a enorme dificuldade de acesso ao ensino remoto entre os estudantes da rede pública.

O que eu lamento é o fato de a educação física, minha disciplina de base, ter prazo de validade. Quanto mais velho, mais difícil trabalhar, e está chegando o momento em que eu vou ter de parar. Mas posso dizer com toda a certeza: se tivesse parado de dar aula em 2014, antes de passar por esse processo, não estaria tão realizado como hoje.

Até 2014, eu nunca tinha ouvido falar em competências socioemocionais. Às vezes até desenvolvia atividades relacionadas a elas, mas não sabia o que eram, que nome tinham. Eu não fui apresentado a elas. Quando comecei a trabalhar com Projetos de Vida, pensei: “Se nunca fiz isso, como vou aprender?” E só tem um jeito: estudando. Mergulhando no assunto, vendo como as atividades são elaboradas, entendendo os objetivos. Muitas vezes achamos que já sabemos tudo, que já dominamos nossa área. O componente de Projetos de Vida nos leva a analisar nossa forma de trabalhar e a ver como podemos modificá-la para melhor.

Além de todas essas mudanças, me tornei uma pessoa mais paciente e que aceita melhor opiniões diferentes. Como professores, tendemos a achar que estamos sempre corretos e que nossa opinião deve prevalecer. Mas quando ouvimos os jovens oferecendo sua própria perspectiva e falando sobre o meio em que vivem, começamos a desenvolver uma competência que a gente não sabia que não tinha: a empatia.

Projetos de Vida é um componente curricular tão importante que lamento não ter tido essa experiência na minha passagem escolar. Não que eu tivesse feito escolhas melhores ou piores, mas teria feito escolhas com mais consciência. Ao mesmo tempo, como projetos de vida não se encerram em um ciclo, nada me impede de, a partir de hoje, aos 50 e poucos anos, ter outros projetos. É como se um horizonte se abrisse e você deixasse de se limitar a determinadas coisas. Mesmo perto de aposentar, mesmo já maduro, mesmo com a família construída, o projeto de vida continua, porque você continua vivo.