Projeto usa samba de raiz para discutir racismo e práticas pedagógicas

por Suzane dos Santos Napolitano, em série de relatos produzidos pelo Porvir em parceria com o iungo.

Sou professora de História da Educação e Pedagogias e Iniciação à Pesquisa no Centro Educacional Ferreira Carvalho, localizado na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ). Em março, a escola foi fechada por causa da pandemia e o ensino passou a ser remoto. Era um momento de grande incerteza, e entendi que precisava aproveitá-lo para dar outro olhar às minhas aulas. Sou professora do magistério – ou seja, de estudantes de ensino médio que serão futuros professores – e queria trabalhar o conteúdo das minhas disciplinas de forma mais leve. Sempre penso que a aprendizagem baseada em projetos é uma boa saída, uma forma de proporcionar um aprendizado mais significativo. E como tudo estava mudando, fiquei pensando no que eu mesma precisava mudar, mexer, criar. Era uma fase de adaptação para mim também, pois tive de aprender a utilizar as ferramentas de ensino remoto e a trabalhar novas linguagens.

Durante a quarentena, estava assistindo a uma “live” de samba para me distrair. Conforme ia ouvindo as músicas, sentia que elas iam me remetendo a situações cotidianas. Comecei a pensar: será que meus alunos – que daqui um ou dois anos estarão na sala de aula – conhecem a realidade das comunidades? Dos jovens negros? Das pessoas em vulnerabilidade social? Isto me inspirou a criar um projeto que intitulei com uma pergunta: “Discutindo a formação a partir da realidade: O que o samba de raiz traduz para a minha prática?”. Este projeto me permitia criar uma conversa entre as minhas duas disciplinas, já que o objetivo era utilizar conhecimentos historicamente construídos para se pensar a prática docente a partir da realidade do povo negro. Era uma forma de os estudantes do magistério não apenas aprenderem a construir um projeto, mas também de entenderem a importância do protagonismo do aluno e do professor em suas atuações.

As turmas de magistério são pequenas, com cerca de dez alunos. Na primeira atividade do projeto, mostrei o samba “Alvorada”, lançado em 1974 pelo mestre Cartola. Os comentários foram muito enriquecedores. Os alunos falaram tanto sobre o que sentiam ao ouvir a música quanto sobre seus conhecimentos de samba e do tema abordado. Logo ali, vi que o projeto poderia ser transformador. Percebi que o grupo era aberto, crítico e tinha muito potencial.

Fomos percorrendo outras etapas. Ouvimos várias canções e utilizamos artigos científicos, reportagens, documentários e entrevistas para estudar não apenas a origem do samba e as razões de ser um estilo musical tão marginalizado, mas também a abolição da escravatura, o espaço social do negro e o racismo nas escolas. O projeto tomou uma proporção ainda maior a partir de maio, com o lamentável episódio da morte de George Floyd (americano negro morto por policiais em Mineápolis, nos Estados Unidos). Já estávamos discutindo muitos dos assuntos que tomaram conta da imprensa e das redes sociais, e isso fez com que nos aprofundássemos ainda mais em debates sobre negritude, preconceito e o modo como o jovem negro é visto na sociedade. Todos esses debates partiam sempre da realidade dos alunos, do entorno da escola e de como eles sentiam que eram percebidos.

Em uma das atividades mais marcantes, usei um formulário para perguntar o que os alunos sabiam sobre seu histórico familiar. Eu mesma fui a primeira pessoa a responder. Sou de uma família de negros, mas também tenho ascendência italiana. Embora não tenha contato com ninguém desta parte da família, facilmente consegui informações. No caso da parte negra, chego até a minha avó, mas não sei a história da minha bisavó. Isto, como tudo, esbarra na escravidão. Ao fazer este apanhado histórico, muitos alunos negros se depararam com a falta de conhecimento sobre sua ancestralidade. O mesmo não aconteceu com a maioria dos alunos brancos, que falam com propriedade sobre seus antepassados. Isso nos mostrou como a história do negro foi roubada e contada pelo olhar europeu. Há todo um contexto por trás do preconceito.

De maneira muito orgânica, todo o andamento do projeto foi delineando habilidades socioemocionais e costurando competências como Projetos de Vida, Pensamento Científico, Crítico e Criativo, Repertório Cultural, Cultura Digital, Empatia e Cooperação e Responsabilidade e Cidadania. Convidamos professores de Artes, Filosofia, Língua Portuguesa, História e Matemática a participar do projeto, inclusive compartilhando experiências pessoais. Criamos fóruns de discussões no Google Classroom, enquetes no Mentimeter e grupos de debates no Zoom. Fizemos produções textuais coletivas e criamos um clipe para o samba “Comunidade Carente”, de Zeca Pagodinho, utilizando um editor de vídeo e fotos do nosso bairro.

A partir deste trabalho, os alunos começaram a se perguntar: o que podemos fazer do ponto de vista prático? Constatamos que muitos jovens, principalmente negros, não iriam voltar a estudar depois da pandemia, e queríamos ajudá-los. Reunimos uma equipe multidisciplinar e criamos uma rede de apoio a estudantes em situação de vulnerabilidade social. Trata-se do Movimento Aprimorar, que utiliza as redes sociais para chegar a estes jovens e inseri-los em grupos de estudo remotos para que eles não desistam de estudar. No momento, usamos o boca a boca para encontrar alguém que possa doar um pacote de internet ou que tenha um notebook parado em casa, por exemplo. Precisamos de apoiadores, e os interessados em ajudar podem entrar em contato pelo Instagram (@movimento_aprimorar).

O Movimento Aprimorar é o produto final do projeto que começou na sala de aula, e que foi abraçado por diversas pessoas que buscam transformar vidas a partir da educação. Em pouco tempo, já conseguimos promover um diálogo entre diferentes saberes e criar uma aldeia de pertencimento.

O projeto foi muito além das minhas expectativas. Percebia que alguns alunos, principalmente os negros, se viam muito aquém do potencial que tinham. Sabia que o projeto precisaria mexer com eles, fazer com que se sentissem parte do ambiente escolar e social. Dá para ver muita diferença no antes, no durante e no depois. Jovens que falavam pouco e tinham baixo rendimento escolar agora estão mais participativos e tornando-se ativistas não só do Movimento Aprimorar, mas também de suas próprias vidas. Se sentir importante é algo muito valoroso para um jovem. O projeto conseguiu buscar, no íntimo do aluno, a sua potencialidade.

Eles se percebiam como jovens negros e percebiam que estavam encontrando barreiras, mas não compreendiam os motivos. Identificavam as dificuldades de conseguir emprego, mas não sabiam associar ao preconceito. Um tema muito marcante, por exemplo, foi a universidade. Dos dez alunos, talvez dois ou três cogitassem fazer universidade. Para os outros, não era uma possibilidade. Universidade pública, então, era algo inalcançável. Vivemos em uma região pobre, onde dificilmente eles encontram pessoas formadas ou empreendedoras. A maioria dos moradores conclui o ensino médio e parte para a mão de obra, o trabalho. O projeto ajudou os alunos a repensarem isso, a entenderem a universidade como um espaço ao qual também pertencem. Fizemos visitas virtuais por faculdades, promovemos contato com professores que se formaram em diferentes instituições. A partir daí, eles começaram a desconstruir conceitos impostos pela sociedade. Começaram a descobrir que não precisam ter o ensino médio como etapa final de sua vida acadêmica.

Houve também uma desconstrução cultural muito importante, porque o samba era marginalizado por muitos dos estudantes. Eles ouviram as músicas, conheceram as histórias, tiveram contato com pessoas que trabalham em escolas de samba. Puderam ver todo um universo que desconheciam e que passaram a querer conhecer.

O projeto mexeu igualmente comigo. Sou uma mulher negra e também precisava falar de preconceito, de negritude, de empoderamento. Precisei construir muita coisa em mim para poder passar segurança no que estava falando aos alunos – e para não criar feridas, porque o assunto é delicado. Precisei desenvolver minha autoconsciência, meu pensamento crítico e criativo, meu repertório cultural, minha cultura digital. Percebi que fazer parte deste ativismo do jovem negro e da mulher negra era o que estava me faltando. Me faltava estar mobilizada, pertencer a um movimento. Este projeto me completou e me construiu. Eu ainda não tinha desenvolvido um trabalho com esse potencial de Projetos de Vida, com esse mesmo impacto.

Quando estamos na posição de professores do magistério, ajudando na formação de futuros professores, precisamos repensar as nossas práticas. Não há como falar em educação transformadora se o professor do magistério não for um agente transformador. Acredito que meus alunos terão um olhar mais cuidadoso para situações complexas, e que conseguirão passar pelas dificuldades que sem dúvida vão aparecer.

Precisam refletir sobre o espaço do professor na sociedade e encarar a escola não como uma ilha, e sim como parte de um todo.

Fiz questão de mostrar a eles que não foi fácil trabalhar as aulas remotas. Não adianta criarmos uma ideia romântica da profissão, como se estes futuros professores fossem encontrar escolas sem problemas e alunos homogêneos. A ideia, ao contrário, é que eles cheguem à sala de aula já com essa desconstrução e o pensamento de transformar. E para trabalharem as diferentes realidades que vão encontrar, eles primeiro precisam conhecer a sua própria realidade: seu bairro, seu lugar. Precisam refletir sobre o espaço do professor na sociedade e encarar a escola não como uma ilha, e sim como parte de um todo.

Também é importante entender que o preconceito racial não deve ser discutido apenas por negros, mas por todos. Nosso projeto usou o samba para falar do negro e da escravidão, mas abrimos a discussão a diversas pessoas. Penso que a educação tem de atuar neste sentido, trabalhando os assuntos de forma aberta e ampla, ouvindo e discutindo todas as perspectivas sobre um tema.

O projeto também ajudou os alunos a perceberem o papel da escola para reduzir desigualdades e não reproduzir preconceitos. Uma aluna compartilhou uma lembrança escolar marcante: de quando, no Dia da Abolição da Escravatura, recebeu uma folha com o desenho de uma criança negra liberta. Uma imagem sem contexto, sem vivência, sem experiência, sem história. Me sinto feliz em perceber que meus alunos não vão reproduzir este tipo de prática quando estiverem em suas salas de aula. E foi minha reinvenção como professora que me proporcionou uma visão mais aguçada da educação.

Nota do Porvir: A iniciativa é um exemplo de como projetos de vida podem ser trabalhados de maneira transversal nos mais diversos componentes curriculares. O esforço de levantar reflexões sobre a negritude não só abarcou a dimensão social dos projetos de vida, em perspectiva ética, como criou uma ponte com a dimensão pessoal ao colocar em pauta temáticas relacionadas ao autoconhecimento e à identidade.