Professores e projetos de vida: relato de Shirley Ventorin

Nossa série de relatos de experiências sobre Projetos de Vida é produzida em parceria com o Porvir. Shirlei Ventorin é pedagoga formada em séries iniciais. Desde 2017, é professora de Projetos de Vida na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Marechal Cordeiro de Farias, em Pimenta Bueno (RO).

“Com Projetos de Vida, me transformei como profissional e os alunos perceberam”.

Minha história com Projetos de Vida começou debaixo de uma árvore. Em 2017, estava um pouco desanimada, atuando na orientação escolar e muito enquadrada em um sistema tradicional de educação. Fiquei sabendo de um processo seletivo na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Marechal Cordeiro de Farias, em Pimenta Bueno (RO), que estava iniciando uma nova metodologia, e decidi me apresentar à equipe gestora. Como a escola estava em reforma e as salas ainda estavam sendo preparadas, a reunião foi embaixo de uma árvore. E ali, a poucos dias do início do ano letivo, a supervisora me falou que faltava uma professora para o componente de Projetos de Vida. Enquanto me dava mais detalhes, fui ficando encantada. Me apaixonei pela ideia de poder ouvir, falar, trabalhar com os sentimentos. Era a escola que eu sempre quis e com a qual eu sempre sonhei.

Fui acolhida pela gestão com muito carinho, participei de formações e hoje sou professora de Projetos de Vida de seis turmas do ensino médio. No primeiro ano, trabalhamos principalmente autoconhecimento, identidade e o que é importante para cada um. No segundo, focamos na relação entre o aluno e o mundo, e cada um deles traça um plano de ação para si. Desde o início do trabalho, chamo a atenção para a ideia de missão, ou seja, para que os alunos estejam sempre refletindo sobre o que vão retribuir ao planeta e como vão fazer a diferença. Já o terceiro ano é voltado à carreira acadêmica, com visitas a faculdades, entrevistas com profissionais, “aulões” para tirar dúvidas sobre o Enem (Exame Nacional de Ensino Médio) etc.

A primeira atividade do terceiro ano, aliás, é revisitar o plano de ação que foi desenhado no ano anterior. Em 2019, por exemplo, levamos todos os estudantes para o refeitório, organizamos as mesas como num bufê e expusemos ali os planos de ação. Fizemos um momento de relaxamento em cantinhos mais tranquilos da escola, com uma música ao fundo, e chamamos aqueles que já tinham se formado para trazerem uma visão de fora. A turma gostou muito de ouvir quem até pouco tempo estava ali na escola com eles, e que agora partiram em busca de seus sonhos.

Durante as aulas, trabalho muito com a ideia de sonho. Uma atividade simples, mas muito especial, é a construção da árvore dos sonhos. Construímos uma árvore mesmo: vamos na serraria, pegamos as cascas de madeira que são descartadas e envolvemos o pilar central da escola com elas. Depois, os estudantes engatam galhos secos usando arames e amarram pedaços de tecido amarelo ou branco. Costumamos dizer que é o nosso ipê. E aí nos galhos eles penduram pedaços de papel nos quais escrevem seus sonhos – de ser jogador de futebol a viajar o mundo, de casar a ser médico. Um dos mais emocionantes para mim foi: “descobrir a cura do mal de Alzheimer”.

Também fazemos uma atividade muito bonita em parceria com a APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Uma conhecida me falou que organizava uma tarde de pizzas para crianças e jovens atendidos pela instituição, mas que não estava sendo tão bacana como ela esperava. Éramos amigas no Facebook e ela comentou que, pelas fotos, percebia que o pessoal da minha escola era animado. Então tive a ideia de levar a turma para a tarde da pizza. Afinal, o voluntariado é um dos temas que trabalhamos em Projetos de Vida, e os estudantes poderiam participar de uma ação beneficente e experimentar o ato de doar seu tempo. Foi um sucesso, tanto que realizamos o evento há três anos. Alguns dançam, outros apresentam teatro de fantoche, outros fazem maquiagem. Os depoimentos são maravilhosos. Percebemos que este evento apresenta uma outra realidade aos alunos, faz com que eles saiam daquele mundinho próprio que é tão típico da adolescência. Um caso muito bonito foi o de uma aluna que ficou o evento todo sentada segurando um bebê que tinha síndrome de Down. Eu sabia que ela tinha alguns problemas pessoais e, ao vê-la mais sozinha e quietinha, pensei: “Que pena, ela não está se divertindo como eu queria.” No entanto, no dia seguinte ela enviou uma mensagem emocionante: disse que achava que não era importante para ninguém, mas que se sentiu muito importante para aquele bebê.

“Se acontece uma situação na escola, seja entre professores e alunos ou entre alunos apenas, chamamos todo mundo e sentamos em círculo no chão, para que todos fiquem iguais, sem hierarquia”.

Também é muito interessante quando realizamos mediação de conflitos. Se acontece uma situação na escola, seja entre professores e alunos ou entre alunos apenas, chamamos todo mundo e sentamos em círculo no chão, para que todos fiquem iguais, sem hierarquia. E aí conversamos, falamos sobre as questões – sempre de maneira cordial. Essa troca é muito importante. Depois que você confia e conhece o potencial dos estudantes, até o aluno que costuma ser agressivo muda. Ele não tem coragem de ser agressivo, porque é tratado com muito respeito. O trabalho com Projetos de Vida me fez olhar para os alunos com mais respeito, carinho, admiração. Quando você dá esse primeiro passo e estende a mão, a contrapartida vem. E vem em um compromisso e uma responsabilidade muito grande por parte do aluno.

Quando os estudantes do ensino médio conversam sobre Projetos de Vida com os do nono ano, destacam principalmente isso: que esta é uma aula na qual serão ouvidos e vistos de fato. Durante o trabalho com Projetos de Vida, eles deixam de ser um coletivo e passam a ser indivíduos. Cada um deles será reconhecido por algum talento, alguma peculiaridade. O professor ajuda o estudante a descobrir suas qualidades e isso vai ajudá-lo em todas as outras questões escolares.

Por se tratar de uma aula muito pessoal, no início da pandemia achei que seria impossível fazê-la remotamente. Pelo Google Meet você não sabe quem está ao lado, quem está ouvindo, então comecei pelas aulas via Classroom. Mas isso não durou nem duas semanas, porque os alunos me procuravam no WhatsApp dizendo que estavam muito angustiados e precisavam de aulas de Projetos de Vida. Então voltamos virtualmente. Na primeira aula, convidamos uma psicóloga para um bate-papo que rendeu muito, e a partir daí fomos nos empolgando – até gincana virtual nós já criamos. Buscamos não fazer nada muito exaustivo: apenas uma hora por semana, nas quais todos podem ligar a câmera e o microfone, mostrar a família se quiserem, falar de suas dificuldades. Sempre fazemos um trabalho especial no Setembro Amarelo, o mês da prevenção ao suicídio, e neste ano foi bem bacana ver a produção de vídeos e imagens sobre o tema, buscando atingir outros jovens. A pandemia faz com que esse momento de conversa seja ainda mais importante. Muitos dos alunos entram na aula 15, 20 minutos antes, apenas para poder bater papo e estar com os colegas. E eu também preparo o ambiente, deixando alguma mensagem no quadro e colocando uma música para tocar.

Aos professores que trabalham com Projetos de Vida, recomendo muito que mantenham um caderno de relatos – algo só para você, ao qual ninguém mais tem acesso. No início do primeiro ano, entrego uma ficha para o aluno preencher, e depois vou escrevendo. Parece besteira, mas, ao reler, você consegue perceber a evolução dos estudantes. E a evolução é nossa também. Acho que mudei até no visual: sou uma pessoa mais jovem, mais leve. Passei a entender tudo aquilo que criticava, aquelas coisas típicas da juventude que parece que eu tinha esquecido. E o mais incrível é que os próprios alunos conseguem enxergar a mudança que esse trabalho causou em mim. Aqueles que me conheciam como orientadora me dizem que sou outra pessoa. Antes, me viam como alguém que dava bronca e só pensava em conteúdo; agora, como alguém que acolhe, conversa.

Comecei minha carreira na alfabetização e era muito apaixonada. Tinha sede de mudar o mundo, mas isso foi se apagando. Na orientação, comecei a trabalhar com questões mais burocráticas, a ficar muito focada nas cobranças do sistema, nos índices, notas, conteúdos, bases curriculares. No entanto, quando estava embaixo daquela árvore ouvindo sobre Projetos de Vida, vi aquela Shirlei lá do início, uma Shirlei que poderia ir além. Encontrar esse componente foi um presente, algo que realmente mudou a minha vida. E se algo muda a vida da gente, não tem como não mudar a vida dos nossos alunos.

 

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